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‘Rap masculino é poço de egocentrismo’, diz Vandal, rapper que critica trap em ‘Sabotage 50’

‘Aracnídeo’ traz uma letra de revolta e pedido de desculpas. Os versos afirmam que ‘tem uns caras no rap’ contemporâneo cometendo xenofobia, homofobia e violência contra a mulher. O rapper Vandal
Divulgação
“O rap é compromisso, não é viagem”, cantou Sabotage em um dos versos mais famosos da história do rap brasileiro. Mais de duas décadas depois, o tom crítico da frase ganha novos significados, ao ser recitado em “Aracnídeo”.
Composta por Vandal, Russo Passapusso e Tejo Damasceno, a música encerra o “Sabotage 50”. Lançado em 3 de abril, o álbum é um tributo ao rapper, assassinado a tiros em 2003.
‘Rap masculino é poço de egocentrismo’, diz Vandal
Além da nova embalagem, o verso vem acompanhado de um revoltado pedido de perdão: “Meu maestro, te peço desculpa/ não existe mais rap, acabou a verdade, agora é só trap/ é topa tudo por dinheiro, se contar ‘cê não acredita/ o trap fecha com a polícia, fecha com a milícia/ eu não fecho com eles, maestro, se não desanda”.
A faixa afirma ainda que “tem uns caras no rap” contemporâneo cometendo xenofobia, homofobia e violência contra à mulher.
“Aracnídeo” cutuca até a raiz do gênero, cuja origem esbarra na história da luta negra. Na faixa, Vandal canta que o rap de hoje está sob poderio de racistas.
“Eu só tive coragem de fazer o que muitas pessoas não têm, ou por terem o rabo preso com algum artista, ou por quererem fazer parte desse processo todo”, afirmou o músico, em entrevista ao g1. Assista ao vídeo acima.
“Eu me despi de qualquer pudor e medo. Escrevi uma carta para ele [Sabotage]. Abri meu coração. Tenho certeza de que tudo o que falei não é mentira.”
Rapper Vandal
Divulgação
Não existe mais rap, agora é só trap
Para Vandal, se Sabotage estivesse vivo, estaria descontente com os rumos da cultura hip hop.
Mencionado nominalmente nos versos de “Aracnídeo”, o trap (subgênero do rap) tem dominado as paradas de sucesso no Brasil. Nascido no início dos anos 2000, nos Estados Unidos, o estilo foi apelidado em referência às “trap houses”, gíria equivalente ao termo “boca de fumo”, ou seja, pontos de narcotráfico. Contexto que faz parte dos subúrbios de onde surgiram as músicas — mais especificamente, em Atlanta.
Com um som melódico, o trap usa elementos como harmonia arrastada e batidas eletrônicas semelhantes ao house. Desde os anos 2010, o estilo também se aproximou do EDM e do pop.
O rapper Vandal
Divulgação
No Brasil, é conhecido por vocais robotizados — na maioria das vezes, por AutoTune — e letras de ostentação, sexo e violência. Entre os artistas famosos do trap brasileiro, estão Oruam, Veigh, Teto, Orochi e Matuê.
Assim como fez na composição, Vandal não quis citar — na entrevista — nomes de músicos que se enquadram nas críticas de “Aracnídeo”. Mas ressaltou que a letra vai além de meros dedos apontados.
“‘Aracnídeo’ é um diálogo entre mim e Sabotage. Não entre mim e MCs, trappers, nada disso. É um diálogo entre mim e a maior referência do rap nacional de todos os tempos.’
Cena do clipe ‘Aracnídeo’
Reprodução/YouTube
É sempre o mesmo flow
Numa das estrofes de “Aracnídeo”, Vandal canta que o rap mainstream está tomado por músicas de que têm “o mesmo flow, mesma letra e mesmo beat”.
“Não é [o elemento estético] que é ruim”, afirma o músico. “O ruim é ser só isso. Assim como qualquer gênero, o trap tem características. Flow, encaixe de verso, AutoTune. O que mais me incomoda é que pintam isso como a única alternativa. Existem vários artistas talentosos que deixam de entregar sua arte, por medo de não serem aceitos.”
“MCs abandonam seu campo artístico pra se encaixar no tipo de roupagem que vende, aquele que for o perfil mais próximo do que é feito nos Estados Unidos. Quem imitar melhor Travis Scott, ou colocar o melhor AutoTune.”
Travis Scott vai à estreia de ‘The idol’ no Festival de Cannes 2023
Sarah Meyssonnier/Reuters
O baiano explora diferentes vertentes do rap. Entre elas, o drill (som marcado por letras de violência explícita e melodia sotuna) e o grime (estética de batidas aceleradas, vocais rápidos e versos que, no Brasil, narram diferentes aspectos da vida nas favelas).
Autor dos discos “Tipolazvegazh” e “Phodismo”, Vandal também insere em seu rap elementos da música jamaicana, do funk brasileiro, do samba reggae e do pagodão baiano, gênero no qual iniciou sua carreira.
“A minha principal luta é fazer com que os artistas novos vejam que é possível, sim, você ingressar em alguns espaços cantando do jeito que você quer cantar, fazendo a letra que você quer fazer, usando o tipo de instrumental que você quer usar. Sendo verdadeiro, contundente, não seguindo um perfil de rodagem de playlist do Spotify.”
Cena do clipe ‘Aracnídeo’
Reprodução/YouTube
Eles só rimam pra playboy
Quanto à ostentação, que já virou figurinha carimbada nos hits do gênero, Vandal diz compreender os motivos por trás das composições, mas desaprova o resultado.
“Eu acho que a ostentação faz parte do perfil da nossa sociedade, dessa busca incessante pela vitória”, diz ele. “A gente abre a porta da casa e vê um esgoto a céu aberto, todas as mazelas ao redor… Daí, quando a gente consegue o mínimo possível, começa a fazer isso ser visto. Até para provar para nós mesmos que conseguimos alguma coisa dentro da história.”
“O grande ponto é quando a ostentação se torna algo tão fútil que não vale mais a pena. Ela tira o seu senso de gosto real pelas coisas.”
“Você não quer mais uma camisa porque gosta da cor, ou do design. Não quer um boné porque se identificou com a modelagem. Não quer um carro porque sonhou com ele. Você só quer o carro que todo mundo quer. A roupa da marca que todo mundo tem, que em um ano vira outra.”
O rapper Vandal
Divulgação
Rap de trincheira
Apesar das críticas, Vandal afirma que o rap está repleto de artistas ótimos, sobretudo mulheres, que estariam dando um “novo grito musical” na história do movimento hip hop.
“Tem muita gente completamente contrária a tudo isso o que está acontecendo. O que me faz ouvir rap hoje em dia são as mulheres, porque são as únicas que ainda tem uma caneta com fome. Uma caneta que busca mostrar novas possibilidades.”
Com espaço limitado no rap, as cantoras do gênero não tem, porém, o mesmo destaque que os músicos homens. São poucas as de sucesso estrondoso. Da nova geração, o nome mais famoso é o da dupla Tasha & Tracie.
Ajuliacosta em um show realizado em São Paulo
Reprodução/Redes sociais
“A vontade de fazer coisas novas e sair desse perfil [do qual o rap mainstream está imerso] vem das artistas femininas”, afirma o baiano, citando rappers underground como Ajuliacosta, Suhhh e Áurea Semiseria.
“O rap masculino é um poço de egocentrismo e eu quero muito me afastar disso.”
Vim pra sabotar seu raciocínio
Muito antes de lançar “Aracnídeo”, Vandal já havia composto letras que colocam em xeque o rap de sucesso.
Em “Só Eu Sei”, o artista canta “pau no cu do Kanye West da Bahia”, numa provável referência a Baco Exu do Blues, cantor que tem uma canção chamada exatamente “Kanye West da Bahia”. (Vandal não confirma, nem nega a interpretação).
O rapper baiano Vandal
Reprodução
Mas diferentemente das obras anteriores, “Aracnídeo” traz, segundo o músico, reflexões mais profundas e, acima de tudo, maduras.
“‘Aracnídeo’ não é uma música de meme. Nem de soberba, ou egocentrismo. É um processo que luta por uma coletividade, por outro olhar dentro do que está acontecendo”, diz Vandal.
É nítido seu orgulho pela composição, da qual, aliás, ele diz ter alguns dos versos mais importantes das últimas décadas.
O rapper Vandal numa participação do show do Baiana System no Vale do Anhangabaú, no aniversário de São Paulo, em 2018
Fábio Tito/G1
Eu não fecho com eles
Expor publicamente tantas desaprovações ao rap mainstream, no entanto, tem um preço.
O rapper define a si como o “Tom Zé da tropicália”, brincando com o fato do músico ter sido esnobado pelo movimento que ajudou a fundar.
“Eu já era um artista escanteado. Nem era buscado, nem tinha comunicação com muitos outros artistas. E a partir dessa música, eu acredito que, se existia alguma possibilidade disso [mudar], foi fechada. Mas eu já sabia que isso ia acontecer. Estou tranquilo quanto a isso.”
“Talvez, as portas que se fecham não eram mesmo para eu entrar. É bom pensar assim.”

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