Preconceito de Ed Motta contra o hip hop remexe em ferida social que ecoa no Brasil desde que o samba é samba
Ed Motta cria polêmica oca ao dizer em live no Instagram que todos os ouvintes de hip hop são “burros”
Jorge Bispo / Divulgação
♪ OPINIÃO – Ed Motta é artista que sempre falou o que pensa em entrevistas. Por isso mesmo, o nome do cantor, compositor e músico carioca volta e meia está nas manchetes e nas redes sociais por conta de alguma polêmica. A da vez é a declaração elitista – feita em live no Instagram – de que todos os ouvintes de hip hop são “burros”.
Se Ed queria causar, conseguiu ao manifestar tanto preconceito sem o mínimo senso crítico ou lógica. Diante de uma sentença tão desprovida de qualquer senso, é claro que houve reações imediatas. Mas o fato é que a polêmica é oca. A declaração é tão vazia e preconceituosa que sequer consegue provocar discussão saudável.
Ed Motta não precisa disso para aparecer. Basta ouvir o 14º álbum de estúdio do artista, Behind the tea chronicles (2023), lançado em outubro, para comprovar que Ed continua sendo um artista relevante, criador de música requintada. Pena que tão cheio de preconceito e incapaz de perceber que há requinte em artistas (e em ouvintes) de todos os gêneros musicais.
Ao eleger o jazz e a música clássica como referências de músicas para “pessoas inteligentes”, Ed se esquece de que o universo pop é tão miscigenado que já há misturas de jazz com hip hop. O rap já se misturou e está em todo lugar.
Aliás e a propósito, o rap é gênero musical já tão consolidado que uma declaração boba como a de Ed sequer provoca cócegas em uma comunidade fortalecida. Qualquer um sabe que, nas últimas décadas, o rap ocupou no universo musical um lugar de rebeldia e contestação que, historicamente, pertencia ao rock desde os anos 1950.
O rap nasceu em guetos, criado por músicos geralmente pretos e periféricos. E já extrapolou há muito o gueto, arrombando portas que estavam fechadas para os rappers por conta de quem tem visão elitista como a de Ed Motta.
Porque, no fim das contas, tudo passa pelo preconceito social. Atacar o rap (ou o funk, geralmente alvo de comentários similares) para elevar gêneros como o jazz e a música clássica – consumidos em nichos por público em geral de maior poder aquisitivo – é remexer na velha ferida social que, no Brasil dos anos 1930 e 1940, expunha os sambistas como “vagabundos” aos olhos de uma elite branca e preconceituosa.
É sempre uma questão de dominação cultural, de alguém se achar superior a outro alguém. É triste que Ed Motta pense que hip hop é música de ouvintes “burros”. E o pior é que o artista realmente parece pensar assim e, mesmo sendo essa um opinião lamentável e ofensiva, Ed está no direito de exercer a liberdade de expressão dentro dos limites garantidos pela Constituição de um país democrático como o Brasil.
De toda forma, uma declaração dessa é tão inócua que em nada abala qualquer artista ou ouvinte de rap. A caravana do hip hop continuará a passar altiva, garbosa, fazendo a cabeça de gente inteligente, gente dona da consciência social de que o mundo é amplo, diverso, e que o sol nasce para todos, assim como qualquer tipo de música, e que ninguém jamais será mais ou menos inteligente por ouvir um determinado gênero.
É a consciência social que parece faltar a Ed Motta e em muita gente elitista do Brasil desde que o samba é samba.