Drag queens Sara & Nina repaginam o samba-canção em álbum que faz deliciosa ode à sofrência dos anos 1950
A dupla de drag queens Sara & Nina, formada por Alessandro Brandão e Gabriel Sanches, lança o álbum ‘Minhas mulheres tristes – Uma ode furiosa ao samba-canção’
Beto Pego (Betina Polaroid) / Divulgação
Capa do álbum ‘Minhas mulheres tristes – Uma ode furiosa ao samba-canção’, de Sara & Nina
Beto Pego (Betina Polaroid) / Divulgação
Resenha de álbum
Título: Minhas mulheres tristes – Uma ode furiosa ao samba-canção
Artistas: Sara & Nina
Edição: Edição independente das artistas
Cotação: ★ ★ ★ ★
♪ Nem tudo ficou acabado entre Alessandro Brandão e Gabriel Sanches quando, em 2019, os artistas brasilienses viraram ex-casal, desfazendo a união afetiva iniciada em 2007.
Um amor que transcende a paixão carnal e o apego comum ao samba-canção – gênero matricial da sofrência nacional, amplificado nas décadas de 1940 e 1950 nas vozes de cantoras como Dalva de Oliveira (1917 – 1972) e Maysa (1936 – 1977) – os mantiveram unidos na vida e no palco.
Sim, em cena e na música, Gabriel vira Sara. Já Alessandro é Nina. Como a dupla de drag queens Sara & Nina, Alessandro Brandão e Gabriel Sanches começaram a fazer shows pelo Rio de Janeiro (RJ) – cidade onde ambos residem – em 2016 com o repertório que gerou o primeiro álbum da dupla, Céu de framboesa (2021), e o segundo, Minhas mulheres tristes – Uma ode furiosa ao samba-canção.
Lançado em 1º de dezembro nos players e editado também em LP, o disco alinha 12 sambas-canção e dois textos de Fernando Pessoa (1888 – 1935) – recitados por Sara & Nina na abertura da cada lado do LP – ao longo de 12 faixas.
A ode à sofrência é deliciosa. Sem cair em terreno modernoso, Sara & Nina ressignificam belezas musicais afundadas na tristeza com a intenção de conectar esse repertório da fase pré-bossa nova com a realidade atual da comunidade LGBTQIAP+, ainda desamparada por altas doses de rejeição afetiva e social, em que pesem os avanços.
Os arranjos do produtor musical Pedro Barbosa ambientam joias como Tudo acabado (Oswaldo Martins e J. Piedade, 1950) e Errei, sim (Ataulfo Alves, 1950) em atmosfera contemporânea, mas preservam melodias e letras.
Risque (Ary Barroso, 1953) reaparece imerso em clima roqueiro, meio indie, quase sujo. Meu mundo caiu (Maysa, 1958) é erguido com energia e toque de flamenco.
Segredo (Herivelto Martins e Marino Pinto, 1947) ganha batida de disco music na introdução do arranjo do medley que junta esse samba-canção lançado por Dalva de Oliveira com outro hit da carreira solo da cantora, Que será? (Marino Pinto e Mário Rossi), repaginado por Sara & Nina com agudos que evocam a estrela Dalva, de cujo repertório a dupla também reprocessa o bolero Fracassamos (Herivelto Martins, 1972) com ecos do soul dos anos 2000.
Já Vingança (Lupicínio Rodrigues, 1951) se situa entre o ska e o rock do grupo The Strokes. Outro standard do cancioneiro amargurado do compositor Lupicínio Rodrigues (1914 – 1974), Nunca (1952) ressurge mais introspectivo, quase jazzy, como se o samba-canção estivesse sendo cantado e ouvido no escurinho de boate gay.
E funciona. Porque pode mudar o nome e pode mudar o ambiente, mas a música de fossa atravessa gerações, incólume, escorada nas imutáveis emoções humanas. E Sara & Nina – personagens de atores com sólida bagagem cultural no campo das artes cênicas – cantam emoções reais.
A banda formada por Arthur Martau (bateria e direção musical), Antonio Fischer-Bband (teclados), Ian Moreira (percussão), Gabriel Quinto (guitarra), Joana Saraiva (sopros) e Paulo Emmery (baixo) se encarrega de trabalhar essas emoções com frescor, mas, cabe repetir, sem mudernidades que tirariam a força deste disco alimentado por (res)sentimentos eternos.
Um dia, o mundo de Sara & Nina caiu, mas as drags aprenderam a levantar e, juntas, se mostram elevadas neste sedutor álbum Minhas mulheres tristes – Uma ode furiosa ao samba-canção.