Notícias

Pop & Arte

Como é feita a tradução de animes no Brasil (e por que ela pode se tornar um problema para estúdios)

Mais do que transpor falas do japonês, trabalho inclui criar referências para público nacional. Em 2023, dublador anunciou saída de elenco por causa de tradução não oficial; entenda Cena de ‘Chainsaw Man’, anime que teve dublador atacado por causa de tradução alternativa feita por fãs
Divulgação
Em janeiro de 2023, Guilherme Briggs — uma das vozes mais famosas da dublagem brasileira — anunciou que deixaria o elenco de “Chainsaw Man”, após sofrer ataques de fãs do anime.
“Eu vou pedir pra sair da dublagem desse anime. Não quero mais estar nele. Para mim, acabou”, escreveu no Twitter.
Intérprete de personagens como Buzz Lightyear (“Toy Story”) e Cosmo (“Os Padrinhos Mágicos”), o ator recebeu ofensas e chegou a ser ameaçado por causa de uma fala do Demônio do Futuro, seu personagem no desenho japonês:
“O futuro é show!”
Dublador Guilherme Briggs foi voz de personagens como Buzz Lightyear e Super-Homem
Reprodução/Twitter
O grito de otimismo, aparentemente inofensivo, ficou no centro de uma polêmica que mostrou como a tradução pode ser um ponto sensível para o mercado internacional de animes — e até causar problemas para os estúdios.
Nesta semana, o g1 publica uma série de reportagens sobre a força da Ásia na cultura pop. Com novo boom dos animes, empresas investem em dublagem e no combate à pirataria. Hollywood responde com mais representatividade asiática em filmes e séries.
Tradução não oficial
Lançado em 2022, “Chainsaw Man” é baseado no mangá escrito e ilustrado por Tatsuki Fujimoto, um fenômeno mundial. Crítica sangrenta ao capitalismo e à máfia japonesa, a história ganhou popularidade pela trama de conspiração, as cenas brutais de violência e o humor ácido.
Antes do lançamento do anime, os quadrinhos fizeram tanto sucesso no Brasil que ganharam uma tradução alternativa feita por fãs — as chamadas “scans” são comuns no universo dos mangás. A versão se disseminou na internet com piadas machistas, ofensas a minorias e uma frase que se tornou emblemática:
“O futuro é pica!”
A fala do Demônio do Futuro foi alterada na animação, que usou como base para a tradução o texto oficial do mangá. Fãs da versão alternativa receberam a mudança como um golpe, e atacaram o dublador.
O personagem Demônio do Futuro foi dublado por Guilherme Briggs no anime ‘Chainsaw Man’
Divulgação
“Fiquei muito preocupado em perder meu Twitter e Instagram por conta de algumas tentativas que fizeram de hackear. Estou sofrendo ataques de ódio, provocações e ameaças por causa de ‘Chainsaw Man’. Peço desculpas a vocês por essas notícias. Espero que isso tudo acabe”, ele disse, na época.
A Crunchyroll, plataforma responsável pela exibição do anime no Brasil, condenou os ataques: “Não existe espaço para cyberbullying dentro da comunidade de animes”, disse a empresa, em comunicado.
Tradução x transcriação
Pode parecer simples, mas o trabalho de transpor um desenho animado para outro idioma vai além de simplesmente traduzir as falas de forma literal.
“Diferentes tipos de fãs querem coisas diferentes. Alguns esperam por uma tradução mais rigorosa, fiel ao texto original japonês. Outros torcem por uma tradução que inclua mais criação. Estamos sempre tentando encontrar um equilíbrio”, afirma Gita Rebbapragada, diretora de operações da Crunchyroll, em entrevista ao g1.
A empresa, maior serviço on-line de exibição de animes do mundo, montou uma equipe em São Paulo e tem investido para ampliar sua base de títulos em português, com o mercado brasileiro se consolidando como o terceiro maior do segmento fora do Japão e da China — o Brasil está atrás apenas de Estados Unidos e Índia.
A executiva cita dois passos para criar a versão em português de um desenho japonês:
“Tem a tradução e a transcriação. Isso vale tanto para suas legendas quanto para nossas dublagens.”
Tradução: Escrever um novo texto a partir de um texto base em outro idioma;
Transcriação: Também chamada de tradução criativa, é a técnica que adota liberdades linguísticas para transmitir uma mensagem em outro idioma, preservando a identidade do texto.
“Olhamos para a tradução literal do japonês e, em alguns casos, há referências a pessoas ou eventos que são muito específicos da cultura do Japão, coisas que não fariam sentido se fossem traduzidas de forma literal”, explica Gita
“Aí entra o processo de transcriação, que pode fazer modificações no texto para incluir referências mais atuais e adequadas para uma determinada região.”
Dessa forma foi incluída, por exemplo, uma referência a Pelé na dublagem da primeira temporada de “Jujutsu Kaisen”, um dos animes mais populares no Brasil.
Referência a Pelé foi incluída na dublagem do anime ‘Jujutsu Kaisen’, um dos mais populares no Brasil
Divulgação
A possibilidade de dar uma identidade regional às traduções é uma das principais pautas de um movimento de dubladores para limitar o uso de inteligência artificial nas versões em português de filmes, séries, jogos e desenhos animados.
“Quando você assiste a um filme, você não vê toda a vida que foi colocada dentro do estúdio. A gente quebra a cabeça e coloca nossa inteligência natural para saber como comunicar da melhor forma”, disse Wendel Bezerra, voz do Goku de “Dragon Ball”, em um vídeo sobre a campanha Dublagem Viva, publicado nas redes sociais.
Mas e as “scans”? As traduções alternativas, feitas por fãs, são levadas em consideração por dubladores e tradutores oficiais? Sobre o caso de “Chainsaw Man”, a diretora de operações da Crunchyroll fala que a versão do mangá espalhada na internet não influenciou a tradução oficial.
“O trabalho é feito por tradutores profissionais. Normalmente, não olhamos para as versões não oficiais.”